Você, RPGista, já parou pra pensar como concebeu o conceito, história e toda a personalidade de seus personagens? Se prefere aventurar-se pelos caminhos sinuosos da narração, já se deteve um instante, enquanto formulava seu enredo, para averiguar a origem dos monstros horrendos, NPCs excêntricos - normalmente retirados da DeviantART - e finais “mexicanamente” trágicos que criou?
Querendo, ou não, as respostas corretas para estas questões o levarão para uma cadeia de acontecimentos psicológicos, influências inevitáveis e frutos da sua evolução mental, e não se preocupem, pois não falarei sobre isto, seria chato demais tratar aqui.
Mas, o assunto é que estas mesmas respostas podem trazer ao seu enredo, a sua criação, ao seu personagem - e especialmente aos finais mexicanos - um propósito, um fromage, um sabor a mais, uma cereja no topo do sorvete. Aqui vamos tratar exatamente disto, quero dizer, não sobre a cereja, sobre o propósito especial, subliminar, ou não, existente nas criações, não apenas o propósito físico na história em si, e sim um propósito paralelo, que segue o enredo físico, mas que para ser notado e entendido deve ser visto por um ângulo maior.
A série clássica infanto-juvenil "The Chronicles of Narnia" ( nomes de clássicos no original são mais marcantes, mas, em português "As Crônicas de Nárnia" ), de C.S. Lewis exprime perfeitamente o nosso assunto Os sete livros escritos entre os anos de 1949 e 1954 apresentam, geralmente, as aventuras de crianças que desempenham um papel central e descobrem o ficcional Reino de Nárnia, um lugar onde a magia é corriqueira, os animais falam, e ocorrem batalhas entre o bem e o mal. Em todos os livros (com exceção de "O Cavalo e seu Menino" ) os personagens principais são crianças de nosso mundo, que são magicamente transportadas para Nárnia a fim de serem ajudadas e instruídas pelo leão falante conhecido como Aslam (ou Aslan, dependendo da tradução). E é este enredo, aparentemente muito singelo, e que bem pode ser uma base para experiências RPGisticas, que revela, por suas entranhas, ideologias que só podem ser notadas se houver interpretação e comparação, por parte do leitor. Propósitos não tão explícitos, que nem todos os que lêem são capazes de perceber.
O primeiro livro da série, na ordem de publicação, The Lion, the Witch and the Wardrobe ( O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa ), o qual recebeu uma célebre adaptação para o cinema pela Walt Disney, narra a primeira aventura dos irmãos Pevensie no mundo fictício Narniano. Resumindo a bruto modo ( a leitura a seguir não é necessária para quem já conhece a história ) ; os quatro irmãos, após muitas dúvidas e certas desavenças, descobrem que um guarda-roupa, num cômodo vazio de uma casa em que viviam temporáriamente, serve de passagem para o tal mundo mágico. Estando lá, descobrem que Nárnia está sendo castigada por um inverno decretado pela Feiticeira Branca, também conhecida como Jadis. Lá eles ficam sabendo duma profecia narniana que dizia que quando dois filhos de Adão e duas filhas de Eva aparecerem e se tornarem reis de Nárnia em Cair Paravel ( com a ajuda do leão Aslam ), o governo da Feiticeira iria terminar. Infelizmente, um dos irmãos, Edmundo, tentado pelas promessas da Feiticeira Branca, acaba traindo os próprios irmãos, avisando-a de que seus irmãos estão em Nárnia e que estão procurando Aslam. Mas de qualquer maneira os outros três acabam por encontrar Aslam, além de conseguirem salvar Edmundo da Feiticeira. Como prova de amor, Aslam se oferece em troca de Edmundo para ser sacrificado na Mesa de Pedra, local onde os traidores são entregues à Feiticeira para sacrifício.
Ufa, muito bem. Como é de se esperar de um livro infanto-juvenil, o final feliz acontece depois da coroação dos quatro irmãos e de sua volta acidental ao nosso mundo.
Sabendo destas coisas, agora vamos a questão central: E daí? É uma história com começo, meio e fim como outra qualquer, todos podem dizer. E na verdade é mesmo, relevando o propósito paralelo não tão explícito que o simples enredo possui. O próprio autor, em uma de suas cartas a um leitor, revela a verdadeira proposta de sua história; abordar os temas do sacrifício de Cristo para remissão, e a sua ressurreição sob a figura do sacrifício de Aslam na Mesa de Pedra em troca da vida de Edmundo. Pode ser feita uma comparação no papel das crianças com o dos discípulos de Jesus colocando Edmundo como Judas Iscariotes (o traidor), e o rei Pedro como o próprio Apóstolo Pedro. As duas meninas também são as primeiras a ver Aslam ressurrecto assim como na narrativa bíblica.
Para os entendidos no assunto “Bíblia” – calma, só estou mencionando – e para os sensíveis a comparações, esta proposta está clara, mas para muitos a visão deste lado da história é desconhecida.
Outro livro da série: The Magician’s Nephew ( "O Sobrinho do Mago" ) deixa um pouco mais explícito seu propósito; uma clara alegoria ao livro de Gênesis. E há muitas outras comparações e interpretações especiais ao longo da história do mundo de Nárnia - todos com propósitos cristãos.
Antes de continuar quero deixar bem explícito, entendam: Não estou dizendo para comprar um CD do Padre Marcelo Rossi e formular um RPG cristão, seria muito ridícula da minha parte. Quero que vejam Nárnia e sua relação com a Bíblia, e os propósitos cristãos, como um exemplo de enredo com uma mensagem especial, uma surpresa, quase explícita.
Há inúmeros outros autores, desenhistas, cartunistas, quadrinistas, mangakás, músicos, pintores, diretores e etc, que prezam esta interpretação paralela de suas criações. Criações que, aparentemente são apenas sanguinolencia e sexo podem ter um significado lindo ( exceto God of War e GTA ) por trás de tudo.
Outro ótimo exemplo é o cineasta, agora mundialmente seguido, Tim Burton. Seus filmes, normalmente de temática sombria, e muitas vezes infantis, possuem este tipo de propósito paralelo, tratando na realidade de questões sociais e pessoais.
E é este tipo de interpretação especial, não levando em conta apenas os fatos explícitos da história, que devem ser imprimidos também nas criações do mundo RPGístico. A diversão, a ação e a confraternização que a prática do RPG proporciona pode ainda ser acrescentada a adquiririção de experiências, questões sociais e pessoais sólidas, importantes, se for incrementado de forma visível este tipo de interpretação.
Agora vamos partir para a questão crucial; como introduzir esta característica na sua história? No seu personagem? Pode ser simples, ou pode ser complicado, depende da profundidade e complexidade do propósito que você quer incluir nas criações.
No caso da criação de personagem o processo é muito mais simples. Um bom exemplo são os personagens do tipo Kratos – indiferentes, inconsequentes e que só anseiam por violencia, vingança, sangue e concubinas. O caso é; de onde surgiu essa gama, esse ódio extremo do personagem? Nos casos mais clichês; pela morte da família, rejeição paternal e outras coisas do tipo Batman. Nos casos mais complexos; por não encontrar nenhum outro propósito para executar em sua vida, por chegar tão longe que a possibilidade de voltar não é mais possível para ele, e outras complicações Freudianas.
Para os enredos, onde a coisa é mais complexa; vamos tomar um exemplo também simples: um reino afundado em guerras externas, onde os moradores sofrem mortes brutais e perdas.
Acima o enredo físico, as razões reais e palpáveis da história. Para incrementar um espírito neste enredo a pergunta chave é; Qual a relação desta história com o mundo real?
A partir da resposta para esta pergunta o efeito da história pode ser o que você desejar. Pode ser apenas mais uma história sobre mortes brutais e perdas, como está claro, ou, pode ser uma crítica inteligente ao sistema social atual, uma forma de sensibilizar, através da insensibilidade, o quanto o mundo está carregado de corrupção e tristeza.
Há outras questões chaves que podem elevar a sua história para um patamar inteligente, instigante, daqueles que marcam, basta pensar.
Novamente quero esclarecer meus dizeres deixando bem claro que não quero que todo RPGísta torne-se um crítico psicótico, pois afinal uma história simples, tosca e clichê, como God of War, pode divertir e muito, mas é também interessante aumentar a nossa intelectualidade enquanto fazemos algo tão prazeroso. Desta forma, players, mestres e simpatizantes estarão desempenhando um grande papel para que a reputação do RPG seja de um jogo bom, simples e saudável. E esta formação do caráter do RPG é algo em que os RPGistas pecam.
U . ( † )
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